quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Extorquir dinheiro sem risco




 A imoralidade do spread ou como extorquir dinheiro sem risco
 "O governo aprovou nos últimos meses vários decretos  que forma noticiados pela imprensa como visando "ajudar as famílias em dificuldades" a pagar empréstimos contraídos para compra de habitação própria.
A leitura das notícias permite a qualquer leigo compreender que o principal objectivo das medidas não é proteger os credores que se encontrem em risco de perder a casa devido a uma quebra dos seus rendimentos que os impeça de pagar as prestações da hipoteca (perda de emprego do emprego, por exemplo), mas sim a proteger os bancos, como é costume.
Entre essas medidas está a possibilidade de o banco subir o spread (ou seja: juro da dívida), unilateralmente, nos casos de divórcio, quando a hipoteca deixa de ser assumida pelo casal (e garantida por dois ordenados) e passa a  ser assumida apenas por um dos cônjugues (apenas com um salário). A lógica dos bancos é clara: as condições podem ser renegociadas porque o titular do empréstimo /hipoteca muda. deixa de ser A e B e passa apenas A. É outro contrato, outro empréstimo, outras condições. E o spread (a margem do banco) pode subir sempre que o novo credor apresnete uma situação financeira mais frágil do que o casal - o que se supõe que aconteça em 99,99% dos casos.
A posição é de facto clara, o que é uma raridade, quando se trata de bancos, mas é imoral, o que já está longe de ser uma raridade quando se trata de bancos.
A lógica do spread é simples: se você fo rico, o banco empresta-lhe dinheiro bararto, com um spread baixo. Se tiver pouco dinheiro o banco empresta-lhe dinheiro caro, com um spread alto. Parece-lhe iníquo?É, mas há um raciocínio na base desta iniquidade: os ricos representam um risco menor que os pobres, por isso os pobres têm de pagar um prémio de risco. Faz sentido? Vejamos.
Imagine que você é um assalariado com um baixo salário: E que negociou um empréstimo para comprar uma casa pelo qual o banco lhe pede um spread de 5%.
Quando pergunta a razão para um spread tão alto, o banco explica-lhe: o seu salário é baixo, a prestação que vai ter de pagar representa uma percentagem elevada dos seus rendimentos, você representa um risco elevado de incumprimento, o banco tem de proteger de si e das pessoas como você e para o afzer cobra um juro mais alto. Mas...e a garantia da casa hipotecada não chega para garantir o risco, pergunta você? O funcionário do banco finge que não percebe e o spread fica mesmo em 5%. Você aceita que o banco se queira proteger do seu risco de incumprimento mas tem uma carta na manga. Uma carta que você vai jogar daí a 25 anos.
No dia em que paga a última prestação do seu empréstimo, você vai ao banco e exige o reembolso do spread cobrado a mais durante os últimos 25 anos (4,5% porque você sabe que o seu primo abastado teve um spread de 0,5%). E explica: quando lhe emprestaram o dinheiro não sabiam se você ia cumprir o plano de pagamentos. Era natural que exigissem uma caução, mas você pagou sempre a horas, sem um atraso. Agora o banco sabe que você cumpriu. O que significa que o banco que lhe cobrou indevidamente esse spread anormalmente alto, do qual você pôde beneficiar durante 25 anos.

Agora você quere-o de volta. Como uma caução. Aí o bancário explica, uma gota de suor começa a formar-se na testa, que as coisas não são assim, que assim era se os bancos funcionassem de uma forma honesta, mas não é o caso. Ainda que você tenha pago a horas, há pessoas como você que não pagaram e, como o banco não se contentou em ficar com as casas delas, você precisa de pagar pelo risco delas. É uma questão de risco solidário, o seu grupo de credores tem um risco elevado e todos os membros do grupo pagam pelo risco de todos os outros. Você parece ter percebido, o bancário suspira. Aí você pergunta por que é que o seu primo não entrou no grupo para contabilização do risco. Pergunta porque é que , se querem mutualizar o risco, não fazem para o conjunto de clientes do banco. E pergunta se o banco não sabe que os spreads altos aumentam o risco de incumprimento e se tornam, de facto, profeciais auto-realizadoras para os cerdores com menos rendimentos. Explica quem se o spread fosse mais baixo para os mais pobres, estes cumpririam mais, o risco do banco seria mais baixo e todos poderiam ficar melhor.O bancário diz, com paciência, que assim os ricos teriam de pagar um spread mais alto e que issos eria complicado. Por isso criam grupos de ricos e grupos de pobres, com spreads diferentes. É que é mais fácil roubar aos pobres, explica. Fim da história.
A imoralidade do spread é uma das fundações da actividade das instituições de crédito, mas seria possível trabalhar de outra forma. Se o spread visa compensar o risco deve ser tratado como caução - e, quando não se verifica nenhhuma perda para o banco, deve ser devolvida a parte que excede o lucro devido. Em alternativa, o risco pode ser estimado para o conjunto dos clientes do banco, sem o recurso a critérios dualistas que apenas visam benefeciar ainda mais os ricos e extorquir ainda mais dinheiro aos pobres."

José Vítor Malheiros  in Público de 18-12-2012


"Melhor que roubar um banco é fundar um" Bertold Brecht

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