sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Nós, filhos de nós mesmos

"As sociedades ocidentais estão cheias de velhos e de velhas. E tendem cada vez mais para estar. E por pirueta antropológica afirmam a juventude como valor primeiro. Os filhos não aparecem, as sociedades envelhecema olhos vistos e como que para esconjurar a nuvem negra que as cobre exaltam, lançam aos quatro ventos a imagem do que é jovem. Há aqui uma síndrome de Cronos invertida. Não, não comemos os nossos filhos, primeiro porque não os há, depois o que queremos mostrar é a nossa imagem como filhos de nós mesmos. A tentativa de rejuvenescer a todo o custo mais não é do que a manifestação serôdia e hipercomplexa de nos vermos, ou de os outros nos verem, como filhos, repito, de nós mesmos, o que é, no mínimo, bizarro. Compensamos, ou julgamos compensar através da imagem plastificada e irreal de uma construção do corpo fora do seu tempo aquilo que não se quis fazer com o real. Os filhos que não se quiseram espelham-se, agora, de maneira distorcida com as plásticas que reconstroem, esticando-o, um corpo velho. E vivemos nessa ilusão. E vende-se essa ilusão. E o que é mais dramático é que tudo se faz, não poucas vezes, acompanhado com a fanfarra, se bem comedida e sóbria, "comme il faut" dos bem-pensantes.
Mas olhemos, com olhos de ver, a solidão que a velhice traz. Olhemos para a solidão que se cola, como segunda pele, à velhice. As motivações para escrever são sempre múltiplas e difíceis de descortinar. Todavia, saber porque estou, hoje, a escrever sobre a velhice e muito particularmente sobre a solidão na e da velhice tem uma explicação comezinha. Veio-me à memória a visita que há tantos anos fiz - como o tempo passa - a uma pessoa que muito estimava e que tinha perto, então, de 90 anos. Vivia sozinha. E estava só. Mais do que estar só, vivia rodeada de solidão. De uma solidão densa, forte, pegajosa, que me deixou, na altura, virado do avesso. Não é de meu natural deixar-me emocionar para lá do razoável. Porém, daquela vez parece que aconteceu.Não tanto pela circunstância mas sobretudo pela condição de vergonha que senti. O que me invadiu não foi a condição de solidão da pessoa que estava ali comigo a falar lucidamente. O que me envergonhou foram as minhas omissões. As minhas não idas,a s minhas ausências, quando podia e devia ter ido. Não, não vale, é batota, querer neutralizar este sentimento com as batidas e sempre "politicamente correctas" justificações: "que não há tempo"; "esta vida frenética não nos deixa fazer aquilo que devíamos fazer"; "irei lá para a semana",etc,etc. Sejamos honestos: tudo isto são balelas, formas cínicas e para mais quase infantis de nos querermos autojustificar. O tempo, aquele pedacinho de tempo, mínimo, ridiculamente mínimo, arranja-se sempre que tivermos para isso vontade. Depois há partilha, não de uma qualquer "bondadezinha" que se deixou escorregar ali para satisfação da nossa boa consciência, há a partilha da fala, dos vincos e das rugas do tempo, do riso, da autonomia, do saber, da graça, das histórias que quem é velho sempre nos entrega em bandeja de prata. E nós, estúpidos, crentes unicamente no universo daquilo que é jovem. não temos a grandeza nem a nobreza de percebermos, de sequer percebermos, o que perdermos. Nem sequer percebemos, mesmo egoisticamente, que a solidão de que fugimos mais cedo ou mais tarde nos vai apanhar em qualquer esquina. Como é possível não sabermos crescer, jovial e "velhamente"."

José Faria Costa na crónica "razão imperfeita", do jornal i de 10/Abril/2013